1.
Dinho era um menino branco de cabelos louros. Ele tinha 12 anos. A casa em que morava, no Jardim Guedala, bairro nobre de São Paulo, ocupava todo um quarteirão. Numa área subterrânea, havia uma quadra de squash. As paredes se abriam na quadra subterrânea de squash, davam lugar a um armário secreto onde ficavam guardadas as raquetes e bolinhas. Dinho tinha motos off-road na garagem. Carros de luxo conversíveis. Um amigo dele ganhara uma Harley Davidson aos 11 anos de idade. Orgulhava-se de já ter aprendido a dirigir a 100 quilômetros por hora. Eram os anos 1990. Um menino de 11 anos morrera no condomínio de luxo dos amigos dele, o Acapulco, no Guarujá, ao entrar numa valeta a bordo de uma Harley Davidson a 100 quilômetros por hora.
2.
Éramos colegas de sala na escola particular. Dinho saltava de um dos carros importados guiados por motoristas contratados que se enfileiravam no portão de entrada. O assoalho do carro do meu pai era furado, de tão velho. O carro bom que a gente tinha, um nacional popular, ele deixava com a minha mãe. Dava para ver o asfalto passar sob meus pés no caminho para a escola. A fuligem poluindo o estacionamento da escola. O barulho ensurdecedor do motor arrancando a paz do estacionamento da escola. As testas franzidas das crianças e adultos no estacionamento da escola. Ao contrário do pai de Dinho, também médico, como o meu, o meu pai passou vários anos devendo as mensalidades dos três filhos na escola.
3.
Uma vez, no vestiário, Dinho e seus amigos apontaram para a minha camiseta, dizendo que era falsificada. Não era da grife que aparentava ser. Talvez fosse da lavra de um primo da minha mãe, que costumava vender marcas fake no Brás. Era igual às camisetas das outras crianças, ou quase igual, mas de fato não tinha sido comprada em Miami ou na Suíça, como as das outras crianças. Algum detalhe denunciou isso para Dinho e seus amigos – crianças de 12 anos –, que resolveram duvidar da marca da minha roupa. Lembrei da cena patética conversando com Y., ela riu. Que besteira. Onde estava a escola para ensinar consciência de classe?, refletimos muitos anos depois. Ninguém nos ensinou sobre nosso lugar de privilegiado no mundo. As pessoas têm consciência do que são?
4.
A velha senhora da limpeza, ela fingiu uma conjuntivite. Muitos anos depois, ouço a história numa conversa trivial. Que absurdo, me disseram, a velha senhora tinha feito aquilo para faltar no trabalho. O brasileiro, dizem, é preguiçoso, dizem. Esfregou sei-lá-o-quê na cara para deixar os olhos inflamados e vermelhos, disseram. A velha senhora da limpeza, a que ponto ela chegou? A velha senhora, quantas horas dentro de um ônibus superlotado ela gasta por dia?, pensei. Patrão versus empregado. O discurso da elite nunca é crítico ao patrão, mas sempre ao empregado. Aquela história revelava capacidade de empatia e conhecimento limitados. Não seria certa falta de visão da História, da Sociologia; não seria ignorar a existência da escravidão ou uma absoluta incapacidade de se colocar no lugar do outro; o ato de direcionar críticas sempre aos oprimidos e discriminados? A cabeça de patrão. Quando se começou a pensar assim? Estamos mesmo rodeados de oprimidos tentando se transformar em opressores.
5.
Em 2010, como repórter, fui a uma comunidade do Capão Redondo, bairro na periferia de São Paulo, para apurar uma reportagem sobre as mortes de adolescentes por uso de lança-perfume. Era o fim da tarde, o guia me levou até um barraco de frente para um córrego feito de esgoto. A porta se abriu, e lá estava aquela mulher descabelada, com estrabismo, sem um dente, um bebê no colo. Contei sete crianças, duas sobre uma cadeira decrépita, quatro no chão de terra e cimento, dividindo o espaço com baratas enormes. Ela não fala muito bem, é deficiente, o guia me diz. Está desempregada. A mulher com as baratas no Capão Redondo, sete filhos na miséria. Ela podia ser a senhora da limpeza. Eu não ia achar ruim se ela fingisse uma conjuntivite.
6.
Quando completei 18 anos, vinte anos atrás, a mãe da minha namorada na época pediu para que eu angariasse entre os meus amigos aqueles que estivessem dispostos a compor a equipe de garçons do novo restaurante que um conhecido dela planejava inaugurar nos Jardins, outro bairro nobre de São Paulo. Consegui convencer cinco deles, e então passamos a gastar tardes e noites lustrando pratos, arrumando as mesas, servindo os clientes ricos daquele lugar.
7.
Um dos sócios, um coroa barrigudo que bebia catorze doses de uísque por noite, o que mais botava dinheiro no negócio, não tinha uma das mãos. No dia da prova dos pratos, um evento que antecedeu a inauguração do restaurante com o objetivo de avaliar previamente a qualidade do menu, um dos meus amigos, garçom como eu, brincou com o patrão: “Quando é que vamos jogar uma partida de tênis?”, perguntou, dando risada. Os convidados ficaram perplexos. Não éramos exatamente pobres, periféricos, nem tampouco o tipo de playboy que jantaria ali. Mas não tínhamos a polidez que aquelas pessoas tinham desde o berço. Mais tarde, entendi aquela cena como um conflito de classes. Mais além, era quase como que um tapa na cara da alta sociedade. E aquilo me satisfez de alguma forma, internamente.
8.
Certo dia, outro dono do restaurante, outro velho rico, sentado numa das mesas do salão, estendeu o braço. Quando cheguei até ele para atendê-lo, ele disse: “Você demorou 17 segundos para vir até aqui”. Carrancudo, recriminando minha suposta lentidão.
9.
Numa noite de calor, enquanto tirava os pedidos, aparecera lá um dos amigos de Dinho, um dos quais havia desconfiado da marca da minha camiseta no vestiário vários anos antes. Ele me reconheceu e foi bastante gentil e educado, embora desse para sentir algo estranho no ar. Veja só, ele deve ter pensado, aquele cara sobre o qual eu praticava bullying agora é o garçom que está me servindo, e eu, veja só, um estagiário num proeminente escritório de advocacia. Ele deve ter pensado de alguma maneira que as relações esculpidas na escola acabam por determinar o destino financeiro de cada um de nós, imaginei. Eu quis mijar no jantar dele, nos moldes do que vira num filme, mas depois percebi como era triste aquela realidade dos ricos, amizades falsas, pessoas amarguradas. Claro, não se podia generalizar. Soube depois, contudo: muitas delas viriam a sucumbir mentalmente diante das dificuldades do mundo.
10.
Também senti certa satisfação nessa luta de classes, que mal entendia, quando me deparei com o fato de que alguns dos membros da equipe que eu tinha formado, meus amigos de bairro, tinham montado um esquema de desvio de peças de filé mignon e de garrafas de Ciroc. E embora não concordasse com os roubos, e até recriminasse-os, aquilo me fez sentir que éramos um pouco como Robin Hood, porque as garrafas de vodka importada e as carnes nobres eram servidas para nossa turma em grandes festas na Vila Sônia.
11.
Um dia, uns playboys bombados sentaram-se no salão ao lado da mesa de uns homens bêbados. Do nada, como faísca, explodiu uma pancadaria generalizada. Um bombado acertou um cliente no queixo, que caiu de costas da cadeira, sobre o chão acarpetado. Cadeiras e taças e jarras voaram contra os espelhos. Um talher acertou o lustre que fora trazido do Vietnã. O requintado salão se transformou num amontoado de móveis. Havia vinho no sofá e nas paredes. E então os playboys correram pela rua, em fuga. Um deles esqueceu uma jaqueta. Lembro que eu e um amigo, só nós dois, às duas horas da manhã, ficamos a arrumar a bagunça. Peguei a jaqueta. Era o preço de tanta agressividade. No caminho de volta para casa, dei a jaqueta para um mendigo.
12.
Algumas pessoas aprenderam a se julgar respeitáveis por meio do dinheiro, mas me parecia que o dinheiro, ao contrário, tornava as pessoas mais desprezíveis. O que tornava as pessoas mais respeitáveis, no meu ponto de vista, eram as experiências delas. As atitudes que elas tiveram em situações diversas. Como trataram o mendigo? Sorriram para o garçom? Conseguiam olhar para além de si mesmas?
13.
Estávamos, alguns de nós, como sociedade, a criar bons pagadores de impostos, não pessoas felizes, dizia Y. – ao ensinar as crianças, algumas delas, que a meta ideal é ser bem-sucedido financeiramente, e só. Para assim ter as roupas autênticas e todo o resto que o dinheiro pode comprar. Alimentar o grande bolo da Previdência. A equação matemática em detrimento da capacidade de empatia. Por que não ambos? Ensinaram a multiplicar as finanças, a ter uma boa aparência, as regras de etiqueta, o árduo esforço dos que se dão bem, a tolerar a vida das 9h às 17h, mas esqueceram de mostrar como preparar o almoço, plantar uma horta, erguer uma casa, cuidar da faxina. Não ensinaram como lidar consigo mesmo. A como tratar o outro e, principalmente, a outra. A digerir sentimentos. A entender que vivemos em meio a sete bilhões de outras pessoas, e que nem sempre competir com elas pode ser um bom caminho. Não ensinaram sobre o patriarcado, a violência das colonizações e a hegemonia do capital, nem a amar ou a chorar. A escola não ensina diretamente as crianças a lidarem com as frustrações da vida nem a serem sinceras consigo mesmas, divagávamos. Não havia visão holística, Y. dizia. Enxergar o indivíduo como um todo, não havia. Não como um todo, só como um número, um contribuinte, um bom profissional. Criar gente feliz, não se criava – só gente bem-vestida. Fosse uma escolha, o que te apeteceria mais, visão de mundo ou um carro confortável?
Esta newsletter foi produzida ao som de Gal Costa, em Força Estranha. A próxima edição de Fagulha sai daqui a 15 dias, em média. Se gostou, compartilhe, comente, apoie com R$ 10 por mês.