1.
Tinha uma pessoa dormindo na frente da porta magnética do predinho onde eu moro. Alguém tirou uma foto da cena e postou no grupo de WhatsApp da quadra, criado pela Polícia Militar – sugerindo aos policiais que fossem tirar o “mendigo” dali. Muitas vezes são criminosos, viciados, ficam usando drogas na distribuidora da esquina, aquele estabelecimento infernal que-não-sei-como-continua-recebendo-aval-do-governo, são marginais!, pode ser que tenham saído recentemente da prisão, disseram. A Polícia Militar vai enviar uma viatura, respondeu o sargento de prontidão.
2.
Os senadores surgem de dentro de carros pretos e caminham para o restaurante chique que consigo ver da minha janela. Eles estão lá todas as semanas, sem exceção, com seus ternos bem alinhados, relógios brilhantes, topetes aprumados. Almoçam e se vão. À noite, o segurança do restaurante chique xinga, chuta, grita e dá pauladas em moradores de rua – todas as semanas, sem exceção.
3.
Brasília é uma parada estratégica no meio do caminho que abriga viajantes de vários lugares longínquos do país, incluindo pessoas muito pobres que deixam suas origens para tentar a vida em outro lugar. É assim porque fica no meio do Brasil, alguém me disse, de maneira que alguns acabam ficando, montando acampamento, pegando no sono escorados nos pilotis.
4.
Uma moradora de rua pode ser uma avó com demência que se perdeu da família há 17 anos. Um morador de rua pode ser uma antiga criança violentada pelos próprios pais. Uma moradora de rua pode ser uma mãe que teve de cometer homicídio para não ser morta. Um morador de rua pode ser um ex-presidiário com ódio e sangue nos olhos. Uma moradora de rua pode ser uma adolescente entregue ao crack. Um morador de rua pode ser um polonês com as fotos de duas filhas europeias na carteira. Um alcoólatra. Um estudante. Uma adolescente revoltada. Pode ser um golpista. Pode ser como Juliano, que teve seu estoque de reciclagem roubado durante a madrugada no Eixão e amanheceu sem dinheiro para comprar o leite em pó da filha. A criança nasceu com uma peculiaridade no sistema digestivo que obriga o pai a gastar 76 reais numa lata especial. O pix dele é 62 9 9478 6781.
5.
O mendigo sem olho. Por o que ele passou?
6.
Diferentemente do Conrado Hübner, estudei dos cinco aos 15 anos no Colégio Visconde de Porto Seguro. Criança branca e de classe média do Morumbi, como ele, igualmente impressionado com o ginásio de ginástica olímpica. Saiu a notícia de uma ação judicial contra a escola particular alemã. Alemães, acusados de segregar alunos bolsistas da TG – abreviação de “Tarde Gratuita”. Uma maioria de pretos e pobres de Paraisópolis. Hübner trouxe à tona que a escola recebe o benefício da isenção fiscal para oferecer bolsas acompanhadas de segregação social, racial, de classe. Lembro dos alunos da TG. Obedeciam a horários diferentes. Não se misturavam aos brancos. Na ala dos ricos, alunos pretos, raros, sofriam bullying. Bullying, não. Racismo. Vários anos depois, alguns alunos ricos, depois da notícia, emitiram suas opiniões num grupo de WhatsApp. O colégio está fazendo caridade e ainda reclamam, disseram. Um é filho de banqueiro. Tenente do Exército. Outro é executivo de megaempresa. Um é herdeiro do agronegócio. Outro mora nos Jardins. O que devem pensar sobre o morador de rua que dorme na porta do prédio?
7.
O trem te deixa no fim da tarde em Moselkern, um vilarejo de 630 habitantes às margens do rio Mosela, o maior afluente do Reno na Alemanha. Há um castelo no alto de uma das montanhas. Uma trilha avança por três quilômetros até lá. Y. e eu caminhávamos pela floresta quando um barulho muito alto surgiu da mata montanha acima, como se uma enorme pedra estivesse rolando em nossa direção. O som dos galhos e arbustos sendo esmagados. Y. se protegeu atrás de uma árvore. Eu por trás de um barranco. Mirei a floresta barulhenta para tentar enxergar o que afinal era aquilo, e dela saltaram dois cervos. Dois veados de duzentos quilos cada rasgando a floresta em alta velocidade, um deles muito perto de me atingir em cheio. De algum modo, o animal pareceu mudar seu curso enquanto no ar, uma imagem que colei na mente. Fugiam de um caçador no alto da montanha, deduzimos. Ouvimos os berros do animal que foi morto. Não ouvimos o tiro, o que gerou uma breve discussão sobre o tipo de arma utilizada, a índole do caçador, sua posição política, por que afinal usar uma besta para matar uma rena? Depois, fiquei pensando sobre o instante em que se quase morre.
8.
O mendigo sem olho. Por quantos momentos assim ele passou?
9.
Um oficial de justiça apareceu para lacrar a distribuidora. Fazia tempo que desejavam fechar o lugar. Na manhã seguinte, algúem cantou a glória do feito inverossímil.
Esta newsletter foi produzida ao som de Wax Tailor, em Que Sera. A próxima edição de Fagulha sai em 15 dias, em média. Se gostou, compartilhe, comente, apoie com R$ 10 por mês.